mercredi 4 juin 2008

de noite penteada ela volta o rosto para a ausência






De noite penteada ela volta o rosto para ausência

Duas personagens, uma mulher idosa, outra mais nova.

Alva e Curia.

Interior de uma casa, espaço aberto uma cama desfeita,

duas cadeiras, lâmpada suspensa, luz crua.

- Quando findar o frio…

- Eu sei. Nao precisas de dizer.

- Jà tenho o vestido e o lenço de seda a condizer.

- Sao sempre os mesmos Curia.

- Eles sao, eu nao, por isso parecem sempre diferentes,

como eu sou.

- Ja reparaste como o chorao se dobrou

com a ultima tempestade ?

- Ja.

Eu fui levantar-lhe umas braçadas e dar-lhe alento.

Faz-me bem dizer-lhe umas certas coisas…

ele nao me responde « eu sei … »

Nao leves a mal, é que durante o dia,

aqui no meio da casa, penso em tanta coisa,

tu nem imaginas, corre tudo para fora e nao lhe dou vasao !

- Eu sei…mas isso de ires falar com a arvore,

podes falar comigo, eu respondo-te.

- Nao sao respostas que eu gosto de ouvir.

As perguntas Alva, as perguntas que tu nao fazes

é que poem questao, percebes ?

- Quando findar o frio irei contigo buscar as pedras

e leva-las até là a cima.

Ainda faltam dois meses para o inverno acabar.

- Esta noite nao fechei olho…mas foi bom,

relembrei a viagem a Veneza com o meu namorado .

- Tu foste a Veneza com o teu namorado ?

- Fui, demos as maos e fechamos os olhos com força,

depois começamos a contar onde estavamos e o que viamos,

as igrejas Alva, os frescos , o sol na praça de St. Marcos

e os pombos a levantarem voo por cima das nossas cabeças.

Depois apanhamos o vaporetto para irmos até uma ilha,

nao me recordo do nome, havia um restaurante

com musica ao vivo e cogumelos grelhados como se fossem bifes !

Vinham num prato largo como uma de folha de platano,

e eram servidos com flores amarelas, fritas.

Ah, se tu soubesses como eram bons esses cogumelos

e as luzinhas a brilharem no fundo da laguna.

O meu namorado era tao bonito, tinha maos morenas e esguias,

sequinhas mesmo de manha enrolado no meu colo,

como seu fosse um outro gato. Mordia-me a orelha e …

- Eu sei…jà me tinhas dito que ele era engraçado.

- Também era engraçado, era muito mais que isso ele .

- Nao sabia é que vocês tinham viajado.

- Como sempre…sabes que eu viajo muito facilmente.

- Queres dizer que…ah, aquela coisa de pegares num livro,

fechares os olhos e ires por ali adiante sem travares.

- Isso, é uma boa terapia, devias experimentar.

A imaginaçao consola aqueles que nao souberam

amanhar o tal peculio.

- Estou muito bem assim, nao viajo pela cabeça,

quando tenho que ir a algum lado, vou e prontos.

- Vais e voltas sem demora.

- Eu …pois, nao gosto de estar fora muito tempo.

- Se tu soubesses por onde eu andei, so de estar ali sentada

à beira do colchao…

- Curia, deixa-me viver na realidade.

A tua cabeça é um permanente sitio

onde as fadas contam historias.

A minha, uma terra de areia negra.

Dei um abraço mortal à vida e fui ver se chovia

para o outro lado do mundo.

Nao acredito em graças obtidas com reconhecimentos

e maos dadas. Essas hà muito que as desenraizei .

Nao sujo a lingua no po do tempo.

- E de noite voltas o rosto para a ausência.

- Pois, é isso, também nao descolo beijos da parede.

- Como é que sabes que eu faço isso ?

- Observo-te à noite, quando nao consigo durmir.

- Sabes o que se diz…

» Nao se almoça com o diabo sem utilizar

uma grande colher ».

A força de olhares para mim enquanto sonho,

vais acabar sentada no colchao. ( ...)

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