De noite penteada ela volta o rosto para ausência
   
   
  Duas personagens, uma mulher idosa, outra mais nova.
  Alva e Curia.
  Interior de uma casa, espaço aberto uma cama desfeita, 
  duas cadeiras, lâmpada suspensa, luz crua.
   
  -         Quando findar o frio…
  -         Eu sei. Nao precisas de dizer.
  -         Jà tenho o vestido e o lenço de seda a condizer.
         -    Sao sempre os mesmos Curia.
  -         Eles sao, eu nao, por isso parecem sempre diferentes, 
        como eu sou.
  -         Ja reparaste como o chorao se dobrou 
              com a ultima tempestade ?
  -         Ja. 
        Eu fui levantar-lhe umas braçadas e dar-lhe alento. 
  Faz-me bem dizer-lhe umas  certas coisas…
  ele nao me responde «  eu sei … »
              Nao leves a mal, é que durante o dia, 
              aqui no meio da casa, penso em tanta coisa, 
              tu nem imaginas, corre tudo para fora e nao lhe dou vasao !
  -         Eu sei…mas isso de ires falar com a arvore, 
              podes falar comigo, eu respondo-te.
  -         Nao sao respostas que eu gosto de ouvir. 
        As perguntas Alva, as perguntas que tu nao fazes 
        é que poem questao, percebes ?
  -         Quando findar o frio irei contigo buscar as pedras 
              e leva-las até là a cima. 
              Ainda faltam dois meses para o inverno acabar. 
  -         Esta noite nao fechei olho…mas foi bom, 
        relembrei a viagem a Veneza com o meu namorado .
  -         Tu foste a Veneza com o teu namorado ?
  -         Fui, demos as maos e fechamos os olhos com força, 
        depois começamos a contar onde estavamos e o que viamos, 
        as igrejas Alva, os frescos , o sol na praça de St. Marcos 
        e os pombos a levantarem voo por cima das nossas cabeças.
              Depois apanhamos o vaporetto para irmos até uma ilha, 
        nao me recordo do nome, havia um restaurante 
        com musica ao vivo e cogumelos  grelhados como se fossem bifes !
        Vinham num prato largo como uma de folha de platano, 
        e eram servidos com flores amarelas, fritas.
        Ah, se tu soubesses como eram bons esses cogumelos 
       e as luzinhas a brilharem no   fundo da laguna.  
       O meu namorado era tao bonito, tinha maos morenas e esguias, 
       sequinhas mesmo de manha enrolado no meu colo, 
       como seu fosse um outro gato. Mordia-me a orelha e …
   -   Eu sei…jà me tinhas dito que ele era engraçado.
   
  -         Também era engraçado, era muito mais que isso ele .
  -         Nao sabia é que vocês tinham viajado.
  -         Como sempre…sabes que eu viajo muito facilmente.
  -         Queres dizer que…ah, aquela coisa de pegares num livro, 
        fechares os olhos e ires por ali adiante sem travares.
  -         Isso, é uma boa terapia, devias experimentar. 
        A imaginaçao consola aqueles que nao souberam 
        amanhar o tal peculio.
         -   Estou muito bem assim, nao viajo pela cabeça, 
              quando tenho que ir a algum lado, vou e prontos. 
  -         Vais e voltas sem demora.
  -         Eu …pois, nao gosto de estar fora muito tempo.
  -         Se tu soubesses por onde eu andei, so de estar ali sentada 
        à beira do colchao…
  -         Curia, deixa-me viver na realidade. 
  A tua cabeça é um permanente sitio 
  onde as fadas contam historias.
  A minha, uma terra de areia negra. 
  Dei um abraço mortal à vida e fui ver se chovia 
  para o outro lado do mundo. 
  Nao acredito em graças obtidas com reconhecimentos
  e maos dadas. Essas hà muito que as desenraizei .
  Nao sujo a lingua no po do tempo.
  -         E de noite voltas o rosto para a ausência.
  -         Pois, é isso, também nao descolo beijos da parede.
  -         Como é que sabes que eu faço isso ?
  -         Observo-te à noite, quando nao consigo durmir.
  -         Sabes o que se diz… 
         » Nao se almoça com o diabo sem utilizar 
        uma grande colher ». 
        A força de olhares para mim enquanto sonho, 
        vais acabar sentada no colchao.